Reencontrar leveza, sentido e políticas públicas que unam — não dividam — gêneros, gerações, classes e afetos
Por Ronald Stresser | Pulso Eletromagnético
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| Passeata feminista - imagem meramente ilustrativa - Sulpost |
Há um ruído novo no ar. Entre timelines inflamadas, slogans que se tornam trincheiras e jovens alimentados por bolhas digitais, o sonho de viver em igualdade reconquista terreno — mas também evidencia fissuras. Pela primeira vez em décadas, pesquisadores e ativistas notam um crescimento do machismo entre os mais jovens. O problema, complexíssimo, pede uma resposta que não seja um espelho do que denunciamos: não ganhar a disputa com ódio, mas perder o ódio.
O feminismo que se afasta das mulheres reais
A filósofa Nancy Fraser, referência em teoria política, aponta um diagnóstico duro: parte do feminismo contemporâneo passou a falar, principalmente, às mulheres muito privilegiadas. Fraser cunhou o termo neoliberalismo progressista para descrever como certas pautas identitárias se amalgamaram a agendas de elite, deixando na sombra a maioria das mulheres, ainda submersas em precariedade, falta de moradia, insegurança econômica e sobrecarga de cuidados.
Para Fraser, garantir o direito ao aborto — imprescindível — não basta se a mulher não tem renda, moradia digna, saúde ou creches. A autonomia reprodutiva exige políticas sociais robustas. A pergunta que ela faz é simples e política: o feminismo vai se restringir a bandeiras simbólicas ou vai retornar a uma ambição material — a de melhorar a vida real da maior parte das mulheres?
“Liberdade sem dignidade é uma liberdade mutilada.” — Nancy Fraser
A convivência perdida (e como reencontrá-la)
A filósofa britânica Nina Power traz outro ângulo necessário. Autora de What Do Men Want?, Power reclama que um discurso que pinta todos os homens como “tóxicos” cria uma atmosfera de beco sem saída. Segundo ela, o objetivo histórico do feminismo não foi demonizar — foi libertar: libertar mulheres e libertar homens dos papéis estreitos que os aprisionam.
Power propõe um remédio simples e profundo: recuperar a leveza no convívio entre os sexos. Menos suspeita generalizada, mais espaço para a brincadeira séria — conversas cara a cara, humor, curiosidade e pequenas gentilezas cotidianas. É a retomada do ócio criativo das relações humanas: olhar nos olhos, testar limites sem dano, dar-se à possibilidade de errar e reconciliar.
“Relacionamentos entre homens e mulheres podem ser divertidos, amigáveis, feitos de atenção e compaixão. Devemos abrir espaço para a brincadeira infinita que também é séria.” — Nina Power
O perigo digital: algoritmos que recriam ódios antigos
Laura Bates, fundadora do projeto Everyday Sexism, lançou um alerta que corta a superfície: o machismo do século 21 ganhou turbina digital. Bates testou algoritmos — criou um perfil de garoto jovem em redes sociais e, em minutos, o sistema passou a recomendar conteúdos misóginos e radicais. Ou seja: não é que a juventude seja intrinsicamente misógina; é que a tecnologia potenciam mensagens extremistas e as torna normativas para meninos que ainda estão se formando.
O reflexo prático é cruel: enquanto mulheres denunciam — e conquistam avanços legais importantes —, uma nova geração internaliza mensagens que desumanizam. A resposta não é calar as denúncias, mas acompanhar essas lutas com educação, presença e políticas públicas que ofereçam alternativas reais.
Como transformar diagnóstico em ação — e sem pânico
Se o feminismo pretende continuar sendo força transformadora, precisa cumprir três tarefas simultâneas:
- Reaproximação social: priorizar políticas de moradia, renda, saúde e educação — para que a autonomia seja material e não apenas simbólica.
- Reaprender a convivência: incentivar espaços públicos e privados de encontro cara a cara, oficinas, clubes comunitários e ações culturais que criem outro habitué relacional entre os gêneros.
- Educação digital: promover literacia midiática para jovens e famílias, responsabilizar plataformas e criar alternativas que não retroalimentem raiva e radicalização.
Nenhuma dessas medidas exige um salto messiânico. Exigem vontade política, cuidado cotidiano e medidas concretas: creches, política habitacional, currículos que ensinem ética e empatia digital, programas comunitários que incentivem o convívio intergeracional. Pedidos grandes, implementações possíveis — e urgentes.
Um convite para leitoras
Este texto é, sobretudo, um convite dirigido às leitoras: encontramos força quando escolhemos a clareza em vez da caricatura, a escuta em vez da sentença. Reconciliar não é renunciar à justiça — é ampliar a possibilidade de que a justiça alcance mais vidas. Envolver-se em política local, apoiar projetos que ofereçam abrigo e emprego para mulheres em risco, participar de rodas de conversa e escolas de pais — tudo isso são gestos feministas, práticos e transformadores.
O futuro do feminismo pode estar menos nas guarnições ruidosas das redes e mais nas mesas simples onde a gente come, conversa e decide. Ali se constroem pontes.

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