O rapto da Europa: A dívida, a financeirização e o espaço político europeu (pt. 2)
Por Provisional University, em seu site, em 13/3/14 | Tradução: Aukai Leisner
Segunda parte do material produzido durante o encontro “O novo
rapto da Europa”, em Madrid no começo deste ano, que reuniu movimentos,
intelectuais e alguns grupos institucionais para debater e propor
alternativas à crise do capitalismo global. Concentrado na questão da
dívida, como modo de governança na atual fase de precarização e
fragmentação sociais, o texto aborda iniciativas tais como o partido Coligação de Esquerda Radical (o Syriza),
que pode ganhar as próximas eleições na Grécia, plataformas comuns de
luta pela moradia na Espanha, com o uso da tática de escrache contra
banqueiros, e o grupo Blockupy Frankfurt, na Alemanha, que promoveu grandes protestos e ações diretas contra instituições financeiras ligadas à Troica, no ano passado.
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Introdução da Provisional University
Esse é o segundo de uma série de posts sobre a participação da Provisional University no recente evento O novo rapto da Europa,
em Madri. Pode-se ler sobre os detalhes do evento e algumas reflexões
sobre a importância da Europa para os movimentos sociais, em nosso
primeiro post (traduzido aqui).
O evento foi organizado em torno de cinco grupos de trabalho, cada um
enfocando uma dimensão diferente dos movimentos sociais europeus.
Foram eles: dívida e financeirização; democracia; comuns;
tecnopolítica e produção cultural. Nós participamos do grupo de dívida e
financeirização e do grupo dos comuns. O formato em si era
interessante, porque participantes de todas as partes da Europa
trabalharam juntos de maneira consistente por quase três dias para
elaborar discussões, análises comuns e futuras linhas de ação e
discussão. Em alguns casos, os grupos trabalharam na produção de um
documento. Os resultados logo estarão disponíveis e vamos publicá-los...
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Dívida, Financeirização e Europa
O grupo de trabalho situou a questão da dívida e da financeirização
no contexto europeu. Tivemos participantes de várias organizações
trabalhando as questões da recusa da dívida e a inadimplência, incluindo
o Syriza [N.E.: Coligação da Esquerda Radical, principal partido de oposição na Grécia e segunda força no parlamento], a International citizen audit network e o Corporate europe observatory (que participa do processo Blockupy). Havia também ativistas oriundos de grupos que focavam a dívida pessoal (em vez da soberana), incluindo a Plataforma de Afectados por la Hipoteca e a European Action Coalition for the Right to Housing and the City.
As questões estão obviamente interligadas, particularmente na Espanha e
na Irlanda, onde booms na habitação e dívidas de hipoteca fazem parte
do contexto de salvamento dos bancos e crises de dívida soberana
correlatas.
As discussões dividiram-se essencialmente em duas dimensões: uma
análise coletiva da questão da dívida e da insolvência; e as
possibilidades de ação numa escala europeia. Grande parte da análise que
elaboramos será disponibilizada pelos organizadores num texto a ser
publicado. O que queremos focar aqui é a questão de como organizar
movimentos trans-europeus em torno da questão da dívida.
Neste ponto, alguns dos tópicos discutidos no primeiro post
desta série são relevantes. A dívida tem emergido como um mecanismo
chave para a exploração econômica da riqueza social, e também para a
governança política da crise e para a imposição da austeridade. Isso
talvez seja mais evidente nos “países do salvamento”, em que a Troica
adotou a posição de “emprestador de última instância” para impor a
austeridade. No entanto, em outros países da zona do euro a ameaça do
temido spread dos títulos bancários tem sido mobilizada de maneira similar — da Itália à Eslovênia à Bélgica.
Importante notar, no entanto, que a relação entre a dívida do governo
e a austeridade vai além dos países da zona do euro e da crise do euro.
Em particular, o Reino Unido se destaca como um país em que a
necessidade de controlar o gasto público constituiu o pano de fundo
ideológico para um experimento neoliberal, talvez tão significativo
quanto o grego, que está remodelando completamente a relação entre
público e privado e a base da reprodução social naquele país.
Desse modo, é interessante examinar como os movimentos em torno da
dívida podem assumir uma dimensão europeia, mas também como podem
exercer um papel na produção de um sujeito político europeu. No workshop,
nós discutimos muitos projetos diferentes, mas aqui gostaríamos de
priorizar dois: organizar um apoio em escala europeia ao Syriza, caso
eles se tornem o maior partido na Grécia; e uma “escrache” europeia em
torno das eleições europeias vindouras.
Apoiando o Syriza
Pesquisas recentes apontam que o Syriza ganhará as próximas eleições
gerais na Grécia. Neste momento, o Syriza representa a única organização
política defendendo o não pagamento da dívida que tem chance de estar
numa posição de agir no curto prazo. Se o Syriza conquistar uma maioria
significativa nas próximas eleições europeias, é possível que sejam
convocadas eleições antecipadas.
O governo atual é também bastante
instável, de modo que as eleições seriam chamadas a qualquer momento
durante o próximo ano. É interessante notar que o Syriza não está
atuando em uma posição em que se pode trabalhar em direção a um cenário
ideal para lidar com a questão da dívida. Se entendi bem, eles
reconhecem que eles provavelmente chegarão ao poder numa situação em que
movimentos sociais e partidos políticos em quase todos os outros países
europeus encontram-se demasiado enfraquecidos para pautar o
não-pagamento. Assim, sua estratégia é negociar com a Troica sobre a
dívida e convocar uma conferência europeia da dívida com vistas a
fomentar um apoio por uma resposta em larga escala. Se a Troika se
recusar a negociar com o Syriza, não está claro o que vai acontecer, mas
há o risco de que o programa do partido perca credibilidade – o que
implica o risco consequente de um aumento do apoio à extrema-direita
nazista.
A organização de um movimento social europeu para apoiar o Syriza e
visibilizar o apoio público ao repúdio e/ou negociação da dívida poderia
ser uma estratégia interessante aqui. Embora seja ambiciosa, as
mobilizações pela Europa (que reconhecidamente não tem chance de ser
grande coisa) poderiam encorajar os movimentos gregos e gerar um impacto
nas narrativas da mídia, que por certo retratarão o Syriza como gregos
negligentes, ideologicamente guiados, que não querem assumir
responsabilidade pela bagunça “que eles criaram”. Ademais, apresenta-se
como uma oportunidade de propor argumentos contra a dívida e construir
movimentos correlatos em cada país. Finalmente, com uma mobilização
coletiva simultânea ocorrendo através da Europa, compartilhando um
conjunto de aspirações, objetivos e demandas comuns, um tal curso de
ação possa fazer parte da construção de um sujeito e um projeto político
coletivos desde baixo. Aqui vale a pena lembrar que a produção de
sujeitos políticos democráticos é um processo material e prático em que
ações, palavras e símbolos, todos têm seu papel.
O escrache europeu
A discussão sobre um potencial “escrache” europeu também foi
interessante como uma potencial práxis que encarne essa dimensão
subjetiva europeia. Um escrache é uma forma de protesto que surgiu na
Argentina mas que foi recentemente usada com grande sucesso pela Plataforma de Afectados por la Hipoteca,
na Espanha. O PAH havia preparado uma lei que tratava do cancelamento
retroativo da dívida de pessoas inadimplentes com a hipoteca, uma
moratória sobre os despejos e a conversão de espaços vazios pertencentes
a bancos em moradia popular (sobre o tema, escrevemos aqui).
Na Espanha, propostas legislativas que conseguem 500 mil assinaturas
devem ser levadas ao parlamento. O PAH obteve um número bem maior e a
proposta foi conduzida ao parlamento, mas foi de fato ignorada pelos
dois principais partidos.
A resposta do PAH a esse episódio foi dizer que os políticos estavam
ignorando o povo. Eles convidaram membros do parlamento para comparecer a
suas reuniões e para descobrir a realidade da crise da habitação, e
quando esses chamados não foram atendidos, eles organizaram protestos em
frente aos locais de trabalho e casas dos representantes eleitos que se
opuseram à legislação. Isso foi extraordinariamente polêmico na
Espanha, mas foi bastante efetivo em visibilizar a crise da
representação, o abismo entre a classe política e as pessoas, e a clara
priorização do setor financeiro pela classe política, no que diz
respeito ao gerenciamento da crise hipotecária e habitacional.
No grupo de trabalho sobre dívida e financeirização, nós discutimos a possibilidade de um escrache em torno dos temas da dívida e da austeridade e focamos nas eleições europeias. Algumas possibilidades foram levantadas aqui. Um exemplo envolveria pressionar os políticos a assinar ou apoiar uma declaração que previa que se fossem eleitos eles apoiariam a Grécia ou outro país em busca da negociação ou repúdio de sua dívida. Se eles descumprissem a promessa, escraches seriam organizados em seus locais de trabalho, casas ou durante suas aparições públicas.
A lógica política imediata aqui implicada é simples. Em casa, os
políticos dão suporte à austeridade porque “o dinheiro não está aqui” e
“não podemos gastar o dinheiro que não temos”. Quando vão à Europa, no
entanto, eles continuam a endossar, com pouca ou nenhuma legitimidade
democrática, as mesmas políticas (disciplina fiscal, Banco Central
Europeu etc), que cria a própria “falta de dinheiro”, tão frequentemente
referida no âmbito doméstico.
Os benefícios dos escraches, em termos de construção de movimento,
são muitos. Em primeiro lugar, chama-se a atenção, a um nível local,
para a importância de instituições europeias e sua natureza
completamente antidemocrática. Em segundo lugar, se ele contribuir para o
sucesso eleitoral do bloco de esquerda no parlamento europeu, seria um
resultado vantajoso vis-à-vis movimentos sociais. Em terceiro lugar,
representaria um experimento interessante em termos de práticas
materiais por meio das quais um sujeito europeu pode começar a tomar
forma. Se uma campanha de escrache fosse levada a cabo em vários países
europeus, propondo o mesmo mote – a rejeição da dívida e da austeridade –
abrir-se-ia espaço para uma rede de práticas comuns operando através da
Europa, compartilhando um conjunto de visões, demandas e discursos.
Algo como um escrache europeu operaria de modo bastante diferente de um processo como Blockupy Frankfurt. Até agora, o processo do Blockupy
tem sido uma das tentativas mais significativas de agir a um nível
europeu, engajar-se com instituições europeias e , uma vez que é
essencialmente tocado por movimentos sociais alemães e acontece na
Alemanha, de desafiar a governança nacionalista norte-sul da crise. Não
conhecemos de perto o processo do Blockupy, mas arriscamos a
sugerir que ele padece de uma potencial limitação. Assim como os
protestos anti ou alterglobalização que vieram antes, o Blockupy
é primordialmente, senão exclusivamente, um evento significativo e
atrativo para pessoas que já participam dos movimentos sociais. É um
evento que reúne coletivos e ativistas da Europa em uma única localidade
física. Não há dúvida de que isso tem um papel importante na
europeização dos movimentos. No entanto, há uma diferença importante
entre construir redes entre movimentos sociais radicais já existentes e a
experimentação com práticas que fazem nascer um sujeito político
europeu.
O último, orientado em direção a uma Europa dos 99%, envolve
necessariamente práticas que transcendam a separação rígida entre os
movimentos e a sociedade mais ampla, que prevalece na maior parte dos
países europeus. Não deve envolver práticas fetichistas ou marcadas por
identidades ideológicas mas, ao contrário, práticas que estejam abertas
para interpolar e envolver a sociedade civil ampla no espaço político e
público europeu, antecipados pelas práticas elas mesmas. É essa a
diferença entre ligar em rede movimentos europeus (uma meta em si
importante) e construir um sujeito político europeu.
O escrache é interessante aqui porque foi algo que teve ressonâncias
amplas na população da Espanha, incluindo aqueles que votam em partidos
de direita. Se se poderia ou não atingir sucessos semelhantes em outros
países e numa escala europeia, no entanto, é uma questão que fica em
aberto.
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