Pierre Lévy e suas visões do futuro
publicado no Jornal da USP, em 28 de agosto de 2011
Cibernética
Em conferência na USP, o filósofo de origem francesa fala sobre a linguagem que desenvolve atualmente – a IEML – e prevê o máximo desenvolvimento das conexões entre o corpo humano e as mídias digitais
Paulo Hebmüller
Se um habitante do século 21 voltasse ao tempo do Antigo Egito ou do Império Romano e tentasse falar sobre computadores, internet ou aviões, seria impossível aos cidadãos daquelas eras compreender a existência dessas coisas. Para o filósofo Pierre Lévy, também a nossa geração é incapaz de conceber aonde o desenvolvimento das mídias digitais e suas conexões com o corpo humano vai chegar. “Estamos falando de algo que não podemos imaginar. Penso num novo tipo de linguagem, capaz de explorar todas as capacidades da computação, inclusive usar o seu poder para manipular símbolos”, disse Lévy a uma plateia que lotou o Anfiteatro Camargo Guarnieri, na Cidade Universitária, no último dia 18.
Na conferência “Horizontes do conhecimento na era digital”, promovida dentro do Ciclo USP 2.0 – organizado pela Coordenadoria de Tecnologia da Informação (CTI) e pelo Centro de Pesquisa Atopos, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP –, o filósofo apresentou o projeto no qual vem trabalhando: a Information Economy Metalanguage (IEML), uma linguagem que tem a capacidade expressiva de uma língua natural e também, por ser computacional, é uma linguagem de programação. A IEML permitirá, por exemplo, a tradução automática entre duas línguas naturais e facilitará a navegação e a filtragem de informações, buscas e diversas operações que poderiam ser feitas automaticamente.
Não são conceitos de fácil apreensão, como o próprio Lévy, usando de bom humor, chamou a atenção várias vezes ao longo da conferência. Eles envolvem, por exemplo, novas conexões entre o córtex biológico e o futuro hipercórtex digital (no site www.ieml.org, em francês, podem ser lidos artigos do próprio filósofo da informação a respeito da IEML). De origem francesa, nascido na Tunísia em 1956, Pierre Lévy leciona no Departamento de Comunicação da Universidade de Ottawa, no Canadá, escreveu livros como As tecnologias da inteligência, O que é o virtual? e Cibercultura e foi um dos primeiros pensadores a refletir sobre a revolução digital.
Dois reinos – Na primeira parte da conferência, Lévy lembrou que “não há inteligência coletiva sem a inteligência pessoal”. Numa era em que todos estão sempre on-line e conectados às mídias sociais, utilizar esses meios para aprender requer, em primeiro lugar, o “gerenciamento da atenção”. Ou seja, é preciso definir interesses, prioridades e áreas de expertise – as que temos e as que queremos ter. Em outras palavras, onde estamos e para onde queremos ir.
“É importante ter disciplina, não se distrair. Você é o centro e o senhor do ambiente, e não deve ficar flutuando”, ensinou. Também é necessário ter em mente o contexto e o quadro maior. Quem fica exageradamente num único foco corre o risco de não conseguir acompanhar o que ocorre ao redor. Levy também salientou que as conexões devem ser feitas com pessoas, grupos e instituições. São elas as fontes, e não se deve confundi-las com os canais – como o Twitter e o Facebook. “Temos que explorar as ferramentas para melhorar as maneiras pelas quais aprendemos e ensinamos”, defendeu.
Nesse momento Lévy iniciou a segunda metade da conferência, advertindo a plateia, novamente com bom humor, que alguns poderiam se perguntar: “Do que afinal ele está falando?”. “Esse é o risco da filosofia”, disse. A síntese da explanação poderia ser dada pelos dois slides fundamentais que Lévy projetou no início e no final dessa parte, mostrando os grandes esquemas nos quais o centro, hoje, é a presença, mas no futuro poderá ser a IEML.
No primeiro, a presença é envolvida por dois “reinos” – o natural e o virtual. No natural estão as relações de nosso corpo com o que nos cerca (prédios, veículos, ferramentas etc.), em que se obedece às leis da física e da mecânica. Nessa dimensão, o tempo material é sequencial, ou seja, não se pode voltar ao passado, não se pode avançar no futuro. Porém, a presença também se expressa em categorias simbólicas, que têm a ver com ideias, imagens, identidade etc. “O mecanismo simbólico é abstrato e define a espécie humana, a habilita a manipular símbolos”, define. No tempo da memória, por exemplo, se pode ir ao passado, enquanto no sequencial, não. “O que acontece agora modifica a ideia que você tem do futuro e transforma sua ideia de passado.”
O meio – medium – é exatamente o que está entre o material e o virtual, definiu Lévy, e que promove comunicações e reflexos nas duas esferas: projetamos imagens da mente no reino físico e do físico na mente. Não é preciso buscar um exemplo digital: basta lembrar que, quando lemos um livro (objeto físico), criamos imagens em nossa mente a respeito do que decodificamos de suas páginas.
Como a aventura da espécie humana é maior do que nossa história ou aventura pessoal, muitas mídias foram usadas para receber e transmitir o conhecimento de uma geração a outra, desde pedras e pergaminhos até o papel e os meios eletrônicos. “As mídias contemporâneas são as digitais. Elas vieram para ficar. Não as desinventaremos, assim como não desinventamos a escrita”, disse Lévy. “O que não vai ficar estável é o poder dessas mídias, que vai crescer e crescer de forma que ainda não podemos imaginar.”
Capacidade máxima – Esse crescimento se dará na capacidade computacional de manipular símbolos, de ampliar a largura das bandas e de ubiquidade – ou seja, será possível acessar máquinas e redes de qualquer lugar. “Haverá novas interfaces entre nosso corpo e as mídias digitais. O problema filosófico, e a filosofia trata de construir problemas, não de dar respostas, é qual será o meio simbólico capaz de dar conta das duas dimensões: a exploração máxima da técnica a serviço do máximo empoderamento da recepção e transmissão”, afirmou Lévy.
A proposta da IEML é justamente a de criar um novo tipo de linguagem capaz de explorar todas as capacidades da computação, a fim de manipular também símbolos e ideias. Atualmente, de acordo com o filósofo, a lógica está formalizada e é possível verificar a veracidade ou falsidade de uma proposição – mas não o seu sentido, o seu significado, porque o campo da semântica é muito mais complexo e envolve inúmeras interações, sinônimos, irregularidades etc. “Minha ideia é construir uma linguagem, um sistema científico de notação para o sentido, que poderia ser manipulado automaticamente pelos computadores. Ou seja, não explorar apenas a veracidade ou falsidade de uma proposição, mas o seu sentido.”
Se hoje os dados já existem e estão localizados em endereços (as URLs da web), a nova linguagem seria um sistema metadados que fizesse transferências de significados para as línguas naturais, mas também entre máquinas. A IEML – que, recorde-se, ainda está em desenvolvimento e, portanto, é daquelas coisas difíceis de imaginar, como advertiu Lévy – é uma espécie de “grande labirinto de unidades de sentido”, sobre o qual seria possível “voar” e fazer inúmeras conexões textuais e hipertextuais. Um mapa conceitual e semântico desenhado automaticamente que a atual internet não provê.
No grande esquema em que a IEML ocupa o centro – que no diagrama anterior cabia à presença –, as duas dimensões em analogia aos reinos material e virtual são a das ressonâncias externas (significados virtuais) e a das ressonâncias internas (significados reais). “Imagine o que será aprender e ensinar quando tivermos esse sistema? Essa é a visão”, ressaltou Pierre Lévy. É de visionarismo, de fato, que se trata.
Os vídeos com a íntegra da conferência de Pierre Lévy e os debates que se seguiram estão disponíveis no site da IPTV da USP: http://video.usp.br/portal/home.jsp
Fonte: https://twitter.com/#!/plevy/status/162567683550871553 | Transcrito de: http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=17571
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