por Fernando Gasparini · via OVERMUNDO · 30/10/2011 · 8 · 1 · Rio de Janeiro, RJ
“Não somos mercadoria.” Sim, isso eu já sabia, mas não pude constatar ao certo o porquê dessa frase, escrita em garranchos num cartaz pregado na Praça da Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, ter me tomado naquele domingo à tarde com tanto fascínio, a ponto de eu estar aqui, agora, ecoando o que minha memória não quer esquecer.
Não foi um encantamento estético – uma estesia – nem tampouco uma provocação reflexiva em torno de algo novo para mim. Eu, acostumado a ir ao teatro e a ler poesias. Eu, acostumado, e talvez um tanto viciado, a contemplar as mais variadas pirotecnias estetizóides e os mais complexos pensamentos filosóficos.
Para ser preciso, devo dizer que as lágrimas vieram aos olhos antes mesmo de elaborar qualquer argumento. Aquilo me pegou antes de mim e sinceramente me emocionou (não seria a emoção manifesta uma explosão de sinceridade?).
Aquilo me emocionou. Sim, eu não sou uma mercadoria! Eu não posso ser visto pelas pessoas como um valor agregado à minha força de trabalho. Eu não posso estabelecer trocas baseadas prioritariamente em interesses econômicos. Definitivamente, não somos mercadoria.
Havia uma boa centena de pessoas na praça, e muitas delas escrevendo cartazes, alguns fazendo música, alguns dançando, e alguns grupos de trabalho em que eram divididos assuntos de interesse da comunidade instalada ali. Desde o dia 22 de outubro, jovens, boa parte estudantes, estão acampados. Barracas estão espalhadas. Uma mesa grande foi improvisada, com comida, frutas e biscoitos, para quem quiser se servir.
Mas contra o que eles estão protestando?, ouvi de uma senhorinha que ousara se aproximar. Vejo outro cartaz: “Acredite! Existe vida após o capitalismo”. E outro (citação de Che Guevara): “O verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor”. Mais outro: “O Capitalismo é a Crise”.
O nome do movimento é “Ocupa Rio”, e é difícil delinear com precisão do que se trata. Se por um lado, há um tônus político (“Belo Monte de Mentiras” era mais um cartaz; “FMI – Fome & Miséria Internacional”, mais um), por outro percebe-se a penetração do campo artístico e poético no debate: “Só uso arma para transformar em arte e só uso arte para transformar em arma.” E nada mais poético e político que um imenso cartaz com umas letras garranchadas dos versos emblemáticos de Castro Alves: “A praça é do povo como o céu é do condor.”
A sobrevivência e a convivência na praça são administradas por grupos de trabalho, chamados de GT. Assim, há o GT da Alimentação, o GT da Comunicação, o GT Teórico e o GT Jurídico, entre outros. Uma fórmula de gestão de trabalho em que todos têm direito a opinar e cuja decisão é sancionada pelo voto em assembleia. Há assembleias diárias. Pude acompanhar o GT Jurídico informando às pessoas acerca de uma nova peça judicial autorizando a polícia a retirar as barracas da praça. Discutia-se as formas de resistência.
De inspiração pacificista, o movimento parece ter influência anarquista e na desobediência civil de Gandhi e Thoreau. Consta que Michael Hardt e Antonio Negri, autores de “Império”, sejam outros inspiradores.
Como não há microfones, os oradores falam e o público repete, numa técnica bastante utilizada por grandes líderes ao longo da história. O procedimento é bastante eficiente (só tinha visto isso em filmes) e, ao requerer mais concentração entre quem fala e quem ouve, provoca uma espécie de transe, no ritmo que se estabelece entre a fala do orador e a repetição pelos demais. Há também alguns gestuais que são compartilhados e que facilitam a comunicação com as pequenas massas que se ajuntam.
Não poderia sair dali sem deixar registrado também o meu grito. Mas aonde conseguir cartazes, tinta, fita adesiva? Compro amanhã numa papelaria e aqui volto. Não. Sentia uma urgência do agora. Comecei a procurar pedaços de papel no chão, quando vi algumas cartolinas amontoadas numa barraca. Posso pegar uma?, indaguei. Não precisa pedir, um menino me respondeu. Aqui tudo é de todo mundo, ele completou.
Pronto! Sem me dar conta já estava sentado no chão, papel e pincel na mão, a desenhar os meus dizeres, um poema que me acompanha desde há alguns anos, de Waldo Motta: “MUNDO CÃO / OSSO DA ALEGRIA / ÚNICA RAÇÃO”. Esses versos sintetizam a minha ideia de felicidade como uma busca política e ao mesmo tempo uma busca poética, com propósito de fissurar as palavras, quebrá-las (no sentido artaudiano) como se fossem objetos concretos e forjar novos sentidos.
Posteriormente, ao chegar em casa, de frente ao computador, pesquisando sobre o assunto na internet, outra surpresa: o movimento é extremamente articulado na comunicação virtual.
A estratégia é relativamente simples – uso de blog (http://www.ocupario.org/) e perfis e grupos de discussão em redes sociais como facebook e twitter. O diferencial está na rapidez e na transparência em que as informações são transmitidas, de forma clara, direta, poética, fragmentada. E mais, através do site http://www.livestream.com/occupy_rio_brazil é possível acompanhar ao vivo as assembleias e oficinas ministradas na praça. Ou seja, quem quiser entrar no “clima” do evento e saber o que está ocorrendo em “tempo real”, é só acessar.
A ideia parece ser essa mesmo: aproveitar o barateamento das tecnologias midiáticas e utilizá-las massificadamente na internet. A escolha de uma praça central também cumpre o objetivo de atrair o interesse dos transeuntes. Durante o dia, os manifestantes conversaram com os donos dos estabelecimentos comerciais ao redor e têm buscado sensibilizar inclusive os policiais.
Trata-se de uma ação interligada mundialmente chamada Global Revolution. São os mesmos manifestantes que lotaram as praças em Madrid, Nova Iorque, Chicago, Porto Rico, e outros. No Brasil, há ocupações no Rio de Janeiro e São Paulo.
O movimento se autointitula horizontal e apartidário. Visa a ocupação permanente da Cinelândia (na praça de Wall Street, eles estão lá há mais de um mês). Não há líder, ninguém fala pelo coletivo, cada um tem a sua própria reivindicação.
“A casa caiu, levante sua barraca” é o slogan do evento. No perfil do twitter, outras informações fragmentadas: “Atividades e ideias rolando livremente na Cinelândia. Tá lindo! Venham passar a noite dessa segunda aqui com a gente”, diz uma mensagem. Outra: “é o 3º dia de acampamento! Momentos inesquecíveis até agora e que estamos fazendo acontecer! Cada indignado, uma conquista”. E mais outra: “Nova semana começando, e depois de tudo que vivemos nesses últimos dias, não deixe que o comodismo perpetue! Revolucione-se! Venha ocupar”.
Algumas mensagens impressionam pela singeleza, como: “vai almoçar no centro do Rio? Passe no acampamento e registre o seu apoio, faça um cartaz, converse com os acampados, sorria! Ocupe!”. São frases rápidas e sintéticas que buscam sensibilizar de imediato o espectador, despertá-lo para a indignação e provocar mobilização.
Vejamos a força de comunicação que a poética pode nos oferecer.
Aqui a poesia das frases curtas e grosseiras (numa espécie de estética ao avesso) funciona como transmissão de conhecimento. A poesia como ferramenta teórica de conhecimento é um assunto que ainda pretendo abordar mais pra frente.
Em meio a tantos fragmentos, encontrei no grupo de discussão do facebook um texto que apresenta com mais clareza e profundidade os desígnios desse projeto. É a “Carta da Humanidade”, lançada em Santiago, Chile, em 07 de outubro de 2011. A força argumentativa impressiona. Transcrevo abaixo alguns trechos:
Nós, indivíduos da espécie humana, que, no exercício de nosso livre arbítrio, assinamos este documento: “A CARTA DA HUMANIDADE”, declaramos não mais reconhecer a autoridade de nenhuma instituição sobre nós e proclamamos a nossa soberania sobre nós mesmos.
E, já, como soberanos de nós mesmos, realizamos o nosso primeiro ato de soberania: assumimos, entre nós, assinantes deste documento, o compromisso de apoiar-nos, mutuamente, a fim de cumprir com o nosso maior propósito existencial: a felicidade, e convidamos a todos, que ainda não o assinaram, a juntar-se a nós nesta autêntica declaração de independência em relação a todo e qualquer mecanismo de coerção da liberdade humana, onde [sic] manifestamos nosso repúdio permanente à dúvida sobre nosso próprio potencial, ao ódio, ao individualismo, à escravidão, à desigualdade, à não-fraternidade e à injustiça.
É no bojo desse pensamento que surge a iniciativa da ocupação, chamada de “Comunidade Livre” ou “Comunidade dos Livres”:
Este compromisso de apoio mútuo se formaliza na constituição da Comunidade Livre, a comunidade dos livres, para que, através dela, em espírito de cooperação, possamos materializar todas as condições necessárias para a criação e manutenção de um ambiente que, em sua totalidade, seja favorável à nossa felicidade, ou seja, ao nosso pleno desenvolvimento espiritual, familiar, social, científico, econômico, cultural e político.
Tendo por objetivos fundamentais a auto-realização existencial, o bem comum e o estabelecimento do diálogo como único meio para a resolução pacífica de todo e qualquer conflito e tendo por valores fundamentais a fé em nosso próprio potencial, o amor, a solidariedade, a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a justiça, a principal ação da Comunidade Livre será ocupar, regularmente, de forma pacífica, o principal espaço público de cada cidade onde estiver presente, para desenvolver, de forma auto-gestionada, as seguintes iniciativas: a Universidade Livre, a Cooperativa Livre, o Centro Cultural Livre e o Fórum Livre, registrando-as e difundindo-as por meios de comunicação próprios, a fim de conscientizar a humanidade de que deve assumir a responsabilidade de decidir livremente sobre seu próprio destino, não delegando mais este poder aos Estados Nacionais, que estiveram, estão e estarão, enquanto existirem, ao serviço dos interesses das grandes corporações e não ao bem-estar dos povos que, teoricamente, por eles são representados.
A Universidade Livre é efetivada a partir de um encontro semanal, com o propósito de “organizar o livre intercâmbio de conhecimentos, de maneira libertária, na sua máxima expressão”. Por isso, considera que “todos somos pensadores livres aptos a receber, processar e compartilhar, construindo, assim, permanentemente, de forma colaborativa, o conhecimento útil à comunidade, sobre o que é real, bom, persuasivo, verdadeiro, eficiente, belo e justo”.
Conforme a carta, o movimento não reconhece a legitimidade do uso da violência por parte de nenhuma instituição, porém se reserva o direito de auto-defesa. O manifesto informa ainda que não tem intenção de oferecer uma resposta a todos os problemas da humanidade, nem tampouco dizer qual é a sua forma de organização perfeita. Entretanto, defende que “a resposta para todos os problemas da humanidade está dentro de nós mesmos”. É nesse aspecto que a articulação política ganha uma dimensão introspectiva, psicanalítica ou mesmo espiritual, uma vez que o fazer político, quando pautado por uma ética, buscaria o equilíbrio entre a ação externa e a reverberação interior.
O texto é enfático: “já nos consideramos livres de toda e qualquer tirania, pois não reconhecemos mais o seu poder”.
Não queremos impor um novo modo de vida a ninguém, apenas, não queremos mais que imponham a nós este modo de vida de dúvida sobre nossas próprias capacidades, de ódio, de individualismo, de escravidão, de desigualdade, de não-fraternidade e de injustiça que é o capitalismo, nos reconhecemos, desde já, como livres para construir o modo de vida queremos para nós, quem quiser seguir vivendo baixo a tirania dos Estados Nacionais e das grandes corporações que siga, mas exigimos respeito a nossa livre decisão de sermos livres.
A certeza do sucesso desse empreendimento está no final utópico da carta:
Este momento histórico será lembrado nos livros de história como A REVOLUÇÃO DOS 99%, A REVOLUÇÃO GLOBAL, A REVOLUÇÃO POPULAR, A REVOLUÇÃO CULTURAL DA DÉCADA DE 10, A QUEDA DO CAPITALISMO, QUEDA DOS ESTADOS NACIONAIS, PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA DA HUMANIDADE, FUNDAÇÃO DA COMUNIDADE LIVRE DA HUMANIDADE OU QUALQUER OUTRO NOME LEGAL... O nome não importa! O que importa é que será lembrada como a revolução que, definitivamente, libertou a humanidade da tirania dos Estados Nacionais e das grandes corporações, revolução onde os protagonistas foram todos nós.
A transgressão ao poder econômico instituído é uma das marcas das ações políticas de vanguarda, e creio que o potencial transformador desse atual movimento está na aceitação da arte como ferramenta e na busca pela felicidade como norteadora do espírito humano. Perceba que a felicidade é alavancada como primeiro item na teia de proclamações da Carta da Humanidade. E não é por menos. Senão vejamos.
Fonte:
Artigo reproduzido livrevente, fiel ao original que é disponibilizado em CC em:
Fotos: Ronald Sanson Stresser Junior / Cartaz de divulgação do Ocupa Rio